Sistemas Frustrados: Líquidos e Gelos de Spin
Outro assunto das nossas áreas de pesquisa concerne a frustração geométrica. Para introduzirmos este tema, continuamos nas idéias relacionadas aos líquidos de spin. Outra possibilidade para se procurar líquidos de spin seria considerar materiais que exibam “frustração geométrica”. Mas o que é frustração? O triangulo eterno!!
Vejamos! Frustração geométrica pode ser facilmente visualizada em materiais antiferromagnéticos. Um exemplo trivial é a rede triangular com spins do tipo Ising. Considere um sistema antiferromagnético bidimensional em que os spins podem apontar apenas nas direções up (para cima) ou down (para baixo). Se eles estiverem dispostos em uma rede quadrada, tudo fica bacana. De fato, cada spin terá como vizinhos, apenas spins apontando antiparalelamente a ele, deixando o estado fundamental antiferromagnético do jeito que deveria ser (ver figuras abaixo). Contudo, se a rede for triangular as coisas não ficam tão simples. Considere o spin no alto do triangulo (ver novamente figuras abaixo). Se ele for up, então o vizinho do vértice esquerdo tem que ser dawn. Da mesma maneira, o vizinho do vértice direito também teria que ser dawn. Neste caso, os vizinhos dos dois vértices da base do triangulo ficariam paralelos, enquanto deveriam ser antiparalelos. Assim, como na figura, se o spin do vértice superior e do vértice esquerdo da base do triangulo estão anti-alinhados (como deve ser um sistema antiferromagnético), então o spin do vértice direito da base não sabe para onde apontar e fica frustrado.

acima de spins tipo Ising). Entretanto, para uma rede triangular, frustração é inevitável. Na figura à
diteita, mostramos um típico network de um sistema frustrado.
Uma das características da frustração é que ela gera estados fundamentais degenerados (ver figura abaixo). Materiais magnéticos que apresentam frustração geométrica são ótimos candidatos a líquidos de spin. A natureza apresenta sistemas com estas características, alguns com redes triangulares, outros em redes kagome (todas frustradas). Existe uma lista relativamente grande de materiais (em dimensão maior que 1) que estão sendo experimentalmente estudados e que tem grande chance de vencer a ordem de Néel no zero absoluto.

triangular, existem seis estados fundamentais com a mesma energia.
Em resumo, podemos dizer que um líquido de spin quântico é um “isolante de Mott” não-magnético, estabilizado puramente por efeitos quânticos no zero absoluto. Ele resiste a qualquer tendência a uma ordem. Suas excitações são spinons.
Portanto, FRUSTRAÇÃO pode gerar novos estados da matéria tais como “spin liquid” (liquido de spin)! Mas além de magnetos que imitam o estado líquido, frustração também pode gerar magnetos que imitam vidros (“spin glass”) e até mesmo magnetos que imitam o gelo da água, conhecidos por “spin ice” (gelo de spin). Um dos objetivos do nosso grupo é o estudo destes novos estados da matéria. Abaixo descrevemos os gelos de spin.

Vimos que FRUSTRAÇÃO pode gerar novos estados da matéria tais como “spin liquid” (liquido de spin) e “spin ice” (gelo de spin). Nesses compostos, novas excitações surgem. Por exemplo, nos líquidos de spin, as excitações são spinons, pseudo-partículas exóticas porque parecem com elétrons quebrados, pois carregam apenas o spin do elétron mas não carregam a carga. “Elétrons são quebrados em pedaços”…Existe portanto FRACIONALIZAÇÃO! Esse é um conceito relativamente novo em Matéria Condensada. Fracionalização é um fenômeno muito comum em sistemas unidimensionais (1D). Em 1D fica mais fácil, pois existe um vinculo forte para a liberdade dos elétrons! De fato, para elétrons se movimentarem em 1D, eles se confrontam com um problema óbvio! Em D>1, um elétron pode circular em torno de outro de maneira a obedecer o Princípio da exclusão de Pauli. Mas em 1D, partículas ficam “exprimidas” e podemos pensar que férmions e bósons são inesperadamente (mais ou menos) semelhantes; assim, os paradigmas da Matéria Condensada Tradicional (tipo o conceito de líquido de Fermi de quasi-partículas) vital para a compreensão dos estados de muitos elétrons interagindo em um metal caem por terra. Abaixo, daremos um exemplo experimental (que considera sistemas unidimensionais) muito interessante de como pode ocorrer fracionalização.
Em 1981, Haldane conjeturou teoricamente que se um fio excepcionalmente fino fosse colocado em temperaturas extremamente baixas, então as condições de limitação de espaço fariam com que os elétrons se comportassem de maneira que seus campos elétrico e magnético assumissem a forma de duas partículas distintas que ele chamou de spinons (de “spin”) e holons (de “hole“, carregando portanto a carga elétrica). O “pequeno” ficaria ainda menor! “Fracionalização”…
O desafio consistia então em criar um “fio quântico” que confinasse os elétrons e trazer esse fio próximo o suficiente de um metal comum, de forma que os elétrons do metal pudessem realizar um “salto quântico” (tunelamento) para dentro do fio. Observando como o ritmo de saltos varia em função de um campo magnético aplicado, a experiência poderia revelar como o elétron, ao entrar no fio quântico, se “separa” em spinons e chargons. “Fracionalização”…

Até agora estivemos discutindo líquidos de spin e spinons (“um elétron quebrado, sem carga). Antiferromagnetos frustrados são grandes candidatos a líquidos de spin e exibirem excitações do tipo spinon. Por outro lado, sistemas ferromagnéticos frustrados são mais raros, mas um material assim vem chamando a atenção nos últimos anos: os chamados spin ices. Então cabe a pergunta: o que um ferromagneto frustrado é capaz de fazer? Agora é a vez dos gelos de spin…
O materiais denominados Spin Ice (Dy2Ti2O7, Ho2Ti2O7) foram descobertos 1997. Basicamente, eles nos fornecem um novo estado magnético que é distinto dos paramagnetos, magnetos ordenados e vidros de spin. Os spins nestes sistemas se localizam nos vértices de tetraedros como mostra a figura abaixo e suas interações são descritas pela Hamiltoniana:

O primeiro termo representa um acoplamento do tipo Ising entre primeiros vizinhos enquanto o segundo termo representa a interação dipolar de longo alcance. O estado fundamental destes materiais é atingido quando, em cada tetraedro, os spins obedecem a regra do gelo, isto é, dois spins apontam para dentro do tetraedro e dois apontam para fora (ver ilustração abaixo). Essa é a origem do nome! No gelo da água, no envoltório de cada oxigênio, existem quatro hidrogênios (dois próximos que pertencem a ele e dois mais distantes que pertencem a um oxigênio vizinho). Estes hidrogênios se dispõem em um tetraedro e, portanto, obedecem a regra do gelo: dois próximos (two in) e dois distantes (two out).
O sistema é frustrado porque nem todos os pares de vizinhos estão “alinhados (quase) ferromagneticamente” (com um entrando e o outro saído) em um tetraedro. Dos 6 pares, no máximo 4 podem ficar nessa situação. Temos então frustração; como conseqüência, o estado fundamental é degenerado e possui uma entropia residual igual a sP = (1/2) log (3/2) por spin (c0mo no gelo da água! ) .
Na Figura abaixo, mostramos um resumo ilustrado sobre os gelos de spin: o nome é adequado, pois eles possuem a mesma estrutura do gelo da água e uma entropia residual no zero absoluto (Pauling foi um dos primeiros a considerar esse fato). São formados por tetraedros (ver figura azul) que possuem um spin em cada vértice (figura vermelha). O estado fundamental contém 2 spins apontando para o centro e 2 para fora de cada tetraedro. Isso é semelhante ao gelo dá água, que tem 2 hidrogênios próximo e 2 mais distantes de cada oxigênio (figura amarela). Essa é a regra do gelo e ela causa frustração…

Em 2008, Castelnovo, Moessner and Sondhi proposeram que as excitações elementares nos spin ices se comportam como monopolos magnéticos (Nature 451, 42 (2008)). Eles surgem quando a regra do gelo é violada :3-in, 1-out e vice-versa. De fato, os pólos poderiam ser separados sem outras violações da regra do gelo. Haveria um string (corda) conectando os pólos, mas tal string não tem conteúdo energético. Além disso, o string seria um objeto observável e, portanto, a carga magnética não precisa obedecer a condição de quantização de Dirac. Nos spin ices, a carga magnética seria cerca 8000 vezes menor que a carga fundamental de Dirac.
Resumindo…Ah! Então um ferromagneto, quando frustrado, pode ser capaz de “quebrar” o imã em 2 pólos separados? Parece que a frustração faz determinado tipo de antiferro quebrar o elétron e determinado tipo de ferro quebrar o imã… Só que em ambos os casos de fracionalização, o que temos realmente são quasi-partículas emergentes que se comportam como “elétrons e imãs quebrados”…

Só uma observação. É claro que muita gente boa pode não gostar da terminologia usada tal como monopolos ou string de Dirac. De fato, esse não é o tipo de monopolo magnético que os físicos andavam procurando (incluindo Blas Cabrera), nos anos 70 e 80 do século passado… Em geral os físicos de partículas pensam usando uma filosofia reducionista: quebrar, quebrar e quebrar…para ver o que tem dentro das coisas. Tivemos e deveremos ter muitos frutos com tal modo de realizar. Se a “partícula” elétron é realmente indivisível, não dá para saber ao certo pois, provavelmente, não temos energia para quebrá-lo (ainda) nos nossos melhores aceleradores de partículas… Também não sabemos se teremos…
No caso dos monopolos magnéticos, o que os físicos pensavam (e ainda pensam) é num tipo de partícula que carregasse uma carga magnética isolada e que estivesse passeando pelo Universo como todas as outras…Nessa linha, em 1982, Cabrera reportou ter detectado um monopolo, mas a despeito de extensas pesquisas experimentais posteriores, outro monopolo nunca mais foi visto; exatamente um ano após a “experiência” de Cabrera, Stephen Weinberg escreveu o seguinte “poema” para ele:
Roses are red,
Violets are blue,
It’s time for monopole
Number TWO!
Nos sistemas que estudamos em matéria condensada (formados basicamente de elétrons e íons), monopolos magnéticos surgem como partículas emergentes, sendo resultado das complexas interações entre os átomos magnéticos (spins) emparelhados de maneira “conspiradora” dentro do material ; Enquanto as partículas reais do sistema são do tipo tradicional (átomos com dipolos magnéticos etc), suas interações e arranjos favorecem a manifestação de objetos exóticos, completamente diferentes delas. Monopolos magnéticos não estão presentes na Hamiltoniana original H que descreve o spin ice. Como podemos ver em H , encontramos apenas as contribuições magnéticas de átomos tradicionais (dipolos magnéticos ou imãs) localizados nos vértices de tetraedros. No entanto, como resultado da interação e organização destes imãs tradicionais, “coisas” parecidas com monopolos magnéticos podem ser excitados. Uma “fracionalização” ocorre (os imãs se quebram em pólos). Quando novos campos ou partículas não presentes na Hamiltoniana original dos sistemas surgem como excitações, dizemos que eles emergem. Emergência é um ramo que, de certa forma, se contrapõe ao reducionismo.
Além dos compostos sintetizados quimicamente, existem ainda outras possibilidades de obtermos materiais que apresentam frustração. A nanotecnologia tem nos brindado com possibilidades excepcionais. Recentes avanços nessa área possibilitaram a construção de sistemas frustrados artificiais e que podem servir de base até mesmo para testar modelos teóricos. De fato, o estudo destes materiais ficava restrito ao conjunto dos limitados sistemas naturais disponíveis; por outro lado, os feitos da nanotecnologia possibilitam a construção de sistemas modelos onde a natureza dos elementos e suas interações podem ser variadas a nosso desejo… Em 2006, um grupo da Penn State University construiu um sistema bidimensional que é capaz de imitar um gelo de spin; eles construíram um gelo de spin artificial (Nature 439, 303 (2006)).
Nosso grupo vem também dedicando grande atenção aos materiais frustrados, quimicamente sintetizados ou artificiais. Os spin ices artificiais, construídos pela primeira vez em 2006, consistem de “nanoilhas” magnéticas (permalloy) alongadas (dimensões de 80 nm X 220 nm e espessura de 25 nm) contendo dipolos magnéticos do tipo Ising (o momento de dipolo aponta ao longo da maior dimensão da ilha), dispostos em uma rede quadrada como mostram as figuras. Cada vértice contém 4 dipolos; para cada par de dipolos em um vértice, a energia se minimiza se 1 aponta para dentro e outro para fora. Assim, a regra do gelo se manifesta, pois a energia total é minimizada se em cada vértice, dois “spins” apontam para dentro e dois apontam para fora. Note que isso leva a frustração, pois de seis possibilidades de pares em determinado vértice, em apenas quatro temos um spin apontando para dentro e outro para fora.

Nossos principais resultados neste tópico são baseados na interação dipolar, dada pela seguinte Hamiltoniana de interação dipolar entre spins:

onde D é a constante de acoplamento da interação e a é a constante de rede; Si representa os spins que são do tipo Ising. Nossa primeira questão sobre estes materiais foi: defeitos do tipo monopolos magnéticos poderiam surgir nestes gelos de spin artificiais bidimensionais? Em 2008, estudamos esta possibilidade. Publicamos dois artigos sobre o assunto que foram publicados em 2009 e 2010: J. Appl. Phys. 106, 063913 (2009); Phys. Rev. B 82, 054434 (2010). Os monopolos obtidos por nós possuem similaridades com o monopolo de Nambu, visto que são conectados por strings energéticos. Recentemente, obtivemos um resultado interessante, publicado no New Journal of Physics 14, 115019 (2012), em que mostramos que a deformação da rede quadrada para uma forma retangular pode levar à degenerescência da regra do gelo nos sistemas artificiais e a monopolos livres. Tal artigo pode ser encontrado no site http://iopscience.iop.org/1367-2630/14/11/115019 , que também contém um video (com duração de aproximadamente 4 minutos) relatando os resultados do trabalho.

tendem a obedecer a regra do gelo (dois apontam para o centro do vértice enquanto os outros dois apontam
para fora). Quando essa regra é violada, excitações emergem (circulos vermelhos e pretos conectados por cordas energéticas). Nosso grupo vem mostrando que tais excitações são muito similares aos monopolos de Nambu.
A possível vantagem dos gelos de spin artificiais em relação aos naturais (ou materiais magnéticos quimicamente sintetizados) é que nos artificiais, os monopolos podem ser visualizados diretamente (através do uso de um “microscópio especial”); podem também ser manipulados em temperatura ambiente, possuem cargas magnéticas mais intensas e facilmente controláveis nos experimentos. Além disto, materiais artificiais como estes podem ser pensados e fabricados da forma que quisermos, com geometrias e dimensões escolhidas e controladas para melhores desempenhos (por exemplo, pode-se mudar o espaçamento ou distancia entre os imãs na rede, possibilitando ajustar o poder das interações frustradas).
Um resumo destes sistemas magnéticos frustrados: a incapacidade ou inabilidade do sistema magnético de encontrar uma configuração única capaz de minimizar a energia destrói a ordem magnética e cria uma via para um estado fortemente correlacionado, levando a um novo estado da matéria (chamado spin ice). A presença de monopolos em baixas energias é de grande surpresa! De fato, no mundo ao nosso redor (“mundo das baixas energias”), existem basicamente elétrons e átomos (íons) e estas partículas (“reais”) são, em geral, de dois tipos quando considerados seus efeitos magnéticos: imã ou não-imã (i.e., dipolos magnéticos ou “zero-pólo”; o elétron é o menor imã livre na Natureza). Elas formam tudo que existe diretamente ao nosso redor (mesa, maçã, pessoas, carros etc). Assim, é realmente inesperado que monopolos possam se manifestar diretamente através dos tradicionais elétrons e átomos da tabela periódica. De fato, esses elétrons e átomos e suas fortes interações formam todas as coisas e objetos que vemos e convivemos na vida diária (e que pelos nossos costumes, não consideramos como “exóticas”). Em geral, estas partículas em interação se organizam em estruturas e configurações (convencionais), ou seja, as estruturas não são frustradas, possuem geometrias relativamente simples, parte das interações é blindada etc; tudo adequado e ajustado ao padrão do que entendemos por “coisas não-extravagantes” (ou seja, os materiais ao nosso redor). No entanto, dependendo do arranjo e acomodação dos imãs e átomos usuais, suas interações podem se extravasar e revelar coisas completamente inesperadas e curiosas (isso é raro, e só agora, com os avanços tecnológicos, começamos a perceber a existência de materiais não usuais, algumas vezes naturais, em outras eles são quimicamente sintetizados e ainda, sistemas construídos artificialmente). Nestes casos, um fenômeno relativamente novo para a comunidade de física, denominado “fracionalização”, acontece. Assim, na multidão de “partículas reais” (ou seja, aquelas com números quânticos tradicionais) que formam certos sistemas “especiais”, as interações entre elas podem levar a “aglomerados” delas próprias que se comportam como novas partículas (quasi-particles), mas diferentemente dos sistemas tradicionais, essas quasi-particles são exóticas, possuindo números quânticos que são frações dos números quânticos tradicionais (daí o nome fracionalização). No trabalho produzido pelo grupo TCFMC relacionado aos gelos de spin artificiais, os dipolos da rede (partículas tipo imã reais) podem se organizar em um “estilo” tão incrível, que o que vemos passa a ser algumas excitações que se comportam primeiramente como “imãs flexíveis e maleáveis” (com strings ou cordas tensionadas ligando os dois pólos opostos; tal excitação emergente é muito similar aos monopolos estudados por Nambu e, portanto, nosso grupo as batizou como monopolos de Nambu). Com o aumento da temperatura, parece ser possível que a corda se arrebente, o que resultaria em um sistema cujas “partículas” passam a ter a aparência de “imãs quebrados” (fração de um imã) ou partidos no meio (em pares de monopolos de cargas magnéticas opostas) .
